Flê e Diáspora: A Baba Ressequida da Ilusão

Há coisas que deviam ser património imaterial de São Tomé e Príncipe. O flê (que é diferente de flé), é aquela baba ressequida que se instala ao canto da boca, sobretudo depois de um sono profundo ou de uma distração prolongada, é uma dessas marcas culturais que atravessa gerações. Um verdadeiro termómetro da higiene e do estado de espírito de um cidadão. Quem nunca viu alguém de flê e pensou: “Esse dormiu bem…” ou, em casos mais críticos, “Esse anda distraído da vida…”?

Sociedade -
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Pois bem, São Tomé e Príncipe tem agora um flê social, e dos grandes. Um flê de ilusões vendidas, de sonhos comprados a prestações e de realidades que, uma vez postas à prova, se desfazem como baba ao primeiro gole de água. E tudo começa com uma ideia fixa: partir. O destino? Portugal, essa terra prometida onde a chuva cai sem convite e onde se acredita que os euros brotam das calçadas.

O problema é que muitos, na ânsia de embarcar, vendem até os chinelos da avó, hipotecam a terra do avô e fazem das tripas coração para pagar uma passagem, convencidos de que, ao aterrarem em Lisboa, lhes será entregue um diploma de cidadão europeu de pleno direito, acompanhado de um subsídio vitalício. Mas a realidade, essa matreira, espera pacientemente no aeroporto da Portela, pronta para lhes dar um choque térmico – e não falo só do frio.

Chegados lá, muitos caem no ridículo. Sem dinheiro, sem rede de apoio e sem plano, a alternativa é improvisar. E improviso, como sabemos, nem sempre rima com dignidade. Instalam-se em bairros problemáticos, amontoam-se em quartos partilhados, e, quando a coisa aperta, aparecem em vídeos caseiros a reclamar da sorte e a dizer que São Tomé não presta – como se a pátria tivesse culpa da falta de tino.

O auge da tragédia cômica surge quando um grupo desses compatriotas decide organizar um almoço de gala num bairro menos recomendável e, com um requinte de inocência que só os são-tomenses possuem, fazem um convite oficial ao Presidente da Câmara para ir comer calulu com eles. O convite correu as redes sociais e virou meme. Cá entre nós, até o peixe fumado do calulu deve ter soltado uma gargalhada.

Mas voltemos ao flê. Porque essa baba seca não é só saliva esquecida ao canto da boca. O flê, neste caso, é a marca visível da falta de preparação, da ilusão vendida e da desorientação nacional. Tal como há quem ande pela vida com flê sem se dar conta, há quem embarque na aventura da emigração sem um plano, sem recursos e sem noção do que os espera.

O resultado? Um país a ser mal representado, um povo que passa vergonha e uma comunidade que, em vez de se unir para crescer, se fragmenta entre os que lutam para dignificar a sua presença e os que vivem a pedir esmola com uma mão e a apontar culpas com a outra.

Se há lição a tirar desta história, é que viajar não resolve tudo. Portugal não é o Pai Grande e a União Europeia não é a Santa Casa da Misericórdia. Quem parte deve fazê-lo com consciência, com estratégia e, acima de tudo, sem flê – nem na boca, nem na cabeça.

Humor de Gravana, N°6

Amador Cruz
Humor de Gravana, N°6

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