Da nacionalização à reforma agrária das roças de São Tomé e Príncipe- Lauro José Cardoso
No contexto são-tomense, o documentário Serviçais, das memórias à identidade, realizado por Nilton Medeiros em 2017, traz relatos, sobretudo de homens e mulheres idosas, que migraram principalmente de Cabo Verde para São Tomé e Príncipe para trabalhar sob regime de contrato em meados do século XX, nas mais variadas roças do país. Muitos desses trabalhadores jamais retornaram aos seus países de origem.
É importante realçar que São Tomé e Príncipe não constituiu uma exceção no processo de colonização do império português, pois processos semelhantes foram vivenciados em outros países lusófonos africanos como Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau e esse conjunto fez parte de um empreendimento maior de colonização portuguesa.
Thomaz (1996) menciona que a construção de um império português se relaciona à ideia de uma vocação imperial “que encontraria sua maior expressão no Império português dos séculos XV e XVI”.
Tal vocação, cimentada nos feitos dos grandes heróis e na capacidade de adaptação do povo português em terras tropicais e no modo de se relacionar com as populações locais, “encontraria na vocação missionária a força que transformaria o Império sobretudo em um ato de Fé”. Essa dimensão religiosa e missionária do colonialismo português também é sublinhada por Thomaz (199б), ao afirmar que:
Francisco José Vieira Machado coloca a Fé como um dos elementos centrais na construção de uma Pátria lusitana para além das fronteiras metropolitanas, em uma luta onde a espada conquista os domínios para a Pátria e o evangelho as almas para Deus (Agência Geral das Colônias, 193б:10). Este elemento cristão é retomado diversas vezes como uma das características mais marcantes do colonialismo português, que o deixaria pleno de altos ideais e o transformaria em um movimento único da moderna história da humanidade (Thomaz] 199б, 94).
ArtigoDa_nacionalizacao_a_reforma_agraria_das_rocas[1]
Segundo Wilson Trajano Filho e Juliana Brasil Dias (2015), os projetos imperialistas em África, como o que foi implementado por Portugal, foram sustentados pela criação de determinadas categorias enquanto uma atividade humana fundamental. Logo, por ser um modo de ordenar o mundo e moldar a perceção sobre ele, essa prática também se configura como um ato de poder. Nessa ótica, o ato de nomear, classificar e construir relações entre categorias “são todas formas de criação de uma realidade que se propõe absoluta, ainda que precise conviver com perceções concorrentes”. Essa perspetiva permite compreender de que maneira os regimes coloniais buscaram instaurar uma visão única de mundo, por meio de estratégias de classificação e hierarquia]ação social. Como destacam os próprios autores:
Eis aí o espírito dos projetos imperialistas em África. Os regimes coloniais representaram empreendimentos grandiosos direcionados a instaurar uma visão de mundo singular, buscando estratégias de imposição de um conjunto de categorias e valores que classificavam as pessoas e as coisas, construindo hierarquias e fornecendo, assim, as bases sobre as quais se sustentavam as práticas de dominação. Nos regimes coloniais, muita energia foi investida na construção de categorias sociais particularmente, na definição da dicotomia fundamental entre colonizador e colonizado. Essas duas classes em oposição tiveram que ser cuidadosamente fabricadas(Trajano Filho e Dias 2015, 10).
Os mesmos autores ainda realçam a necessidade de um estudo da vida colonial que considere novas perspetivas epistemológicas, como a linguagem, os atos de sociabilidade, a vida doméstica, os rumores e as diferentes formas de manifestação artística nos países africanos. A junção desses campos abre elementos e possibilidades para um entendimento mais aprimorado “do que foram as experiências nascidas desse encontro transformador em território africano” (Trajano Filho e Dias 2015,12).
No contexto são-tomense, o documentário Serviçais, das memórias à identidade, realizado por Nilton Medeiros em 2017, traz relatos, sobretudo de homens e mulheres idosas, que migraram principalmente de Cabo Verde para São Tomé e Príncipe para trabalhar sob regime de contrato em meados do século XX, nas mais variadas roças do país. Muitos desses trabalhadores jamais retornaram aos seus países de origem.
Existe também entre os moradores locais um sentimento de repúdio e descontentamento pelo fato de que essas roças foram “tomadas pelas mãos são- santomenses” na pós-independência. Desde então, o Estado é percebido pelos moradores como o principal responsável pelo arruinamento do lugar como empresa estatal capitalista, que teria deixado os moradores sobrevivendo “à própria sorte”.
Por: Lauro José Cardoso
