África -

Emery D’alva: Numa relação íntima com o Covid-19

Estou “coronado” há um mês e meio. Tive desde 27 abril e durante 3 dias, febres de 39°C, assim como dores de cabeça, corpo e fraqueza. Um teste PCR realizado no dia 30 abril confirmou que tenho mesmo o Covid-19.

Não quis fazer disso um assunto tabu, pois acredito que é necessário dar rosto à doença. Ainda persiste algum desleixo em relação à sua existência em São Tomé e Príncipe. Ela atinge pessoas de todas as idades, géneros, religiões, cores, continentes e ideologias e de todos os estratos sociais. Deve ser levada a sério, sobretudo pelos que pertencem a grupos de risco (pessoas com mais de 60 anos, com doenças crónicas, com diabetes, hipertensão, problemas renais, problemas respiratórios, problemas cardíacos, cancro, seropositivos, etc). Encontro-me em isolamento domiciliar com esposa e filhas que também foram contaminadas. As meninas não tiveram sintomas. Eu e a esposa tivemos os que descrevi acima, mais a perda de olfato e paladar, para além duma tosse seca esporádica. Tomamos Azitromicina (antibiótico), vitamina C e paracetamol sob recomendação médica e a isso juntamos chás de limão, gengibre, alho e de moringa. Não temos sintomas há 4 semanas mas o 2º teste efetuado a 15 maio  voltou a acusar positivo. Aguardamos agora os resultados do 3º teste realizado a 29 mai0.

Pelos relatos que tenho recebido, duvido que seja possível conter a propagação da doença sem uma mudança drástica do comportamento de cada um de nós. O número de pessoas contaminadas é seguramente muito superior à nossa capacidade de realizar testes. A forma como vivemos tão próximos uns dos outros em quintais onde se amontoam várias gerações de uma mesma família e a proliferação de quitandas nos bairros onde todos se juntam para confraternizar, acelerou a sua disseminação. Seremos possivelmente dos primeiros países do mundo a conhecer a imunidade de grupo, ainda que involuntariamente.

Tenho recebido muitas chamadas de pessoas que afirmam ter os mesmos sintomas mas que não querem testar por medo de serem confrontadas com a confirmação de que estão infetadas e também porque acham que vão ficar hospitalizadas e depois morrer. O problema é que se não o fizerem, vão contaminar outros e/ou piorar sozinhas em casa.

Pouca gente confia nas nossas instituições de saúde e todos os dias ouço outros santomenses lançarem mais descrédito nelas. Esquecem-se que são tudo o que temos e que se as arrasarmos por completo não teremos mais nada. Muita gente está a torcer para que tudo corra mal e não disfarça a sua satisfação quando algo menos positivo acontece realmente. Vi e li de tudo nas redes sociais nestes 40 dias.

São nestes momentos que se vê o valor duma nação. A sua capacidade de resiliência. De se solidarizar. Períodos de crise e de guerra revelam o que realmente somos. Tanto pode sobressair: (i) o pior de nós (ativistas femininas foram covardemente atacadas através de fotomontagens enquanto que outras pessoas desejaram que um avião caísse e não sobrevivesse ninguém para além do piloto quando foi lançada a notícia falsa de que nele tinha sido evacuado um ex-dirigente numa altura em que mais ninguém poderia fazê-lo); (ii) como o melhor de nós (as várias campanhas de sensibilização da população e de angariação de fundos para aquisição de material médico e as iniciativas de distribuição de bens alimentares, máscaras e material de limpeza levadas a cabo pela sociedade civil e pelas empresas, são disso, um agradável exemplo).

A sociedade santomense nunca esteve tão dividida, polarizada e politizada como agora. Até as amizades se organizam em função das preferências partidárias. Há cada vez menos espaço para gente moderada. Gente que antes podia tanto criticar como elogiar uma boa ação ou ideia de um dos lados sem ser conotada com ou contra estes lados, remete-se agora ao silêncio, tal é o risco de assassinatos de carácter e de linchamento virtual.

Concordo com os descontos para o fundo de resiliência e com todas as medidas tomadas pelo PR e pelo Gov até agora para combater a pandemia e os seus efeitos. Não podemos estar constantemente de mãos estendidas a pedir dinheiro aos outros países se não formos capazes de algum sacrifício para mobilizar recursos internos. Além do mais, deixar uma boa parte dos nossos cidadãos à fome é um rastilho para o aumento da delinquência e dos roubos. Devemos é exigir que a aplicação do fundo seja feita com total transparência e apresentação de contas detalhadas.

Apesar de existir uma corrida para encontrar o erro, para apontar o dedo e ridicularizar as autoridades, penso que não pode deixar de haver criticas. Não pode deixar de haver reclamações. Se forem fundamentadas, só poderão fazê-las evoluir. Se não forem, descobre-se rapidamente que não acrescentam valor. Viver em democracia é ser permanentemente escrutinado. Cabe às autoridades não abrirem o flanco se não quiserem ser “incomodadas”.

Reconheça-se que foram cometidos erros iniciais. Sobretudo na comunicação e na contabilização, isolamento e seguimento dos contaminados e dos seus contactos. Ficou evidente que é necessário informatizar o mais urgente possível o nosso sistema de saúde. Dificilmente se encontrará melhor oportunidade para reestruturar e modernizar este setor prioritário. Podemos também celebrar várias vitórias: laboratório de testes PCR em STP; mais de 2 dezenas de ventiladores; hospital de campanha montado e com utilização abaixo da capacidade (felizmente); uma cada vez maior utilização das máscaras e; queda abrupta do crescimento do número de mortes e de infetados. Isto é um sinal de que depois do choque inicial (tal como aconteceu em outros países mais desenvolvidos) e de termos visto um grande número de profissionais de saúde contaminados, a qualidade da nossa resposta sanitária melhorou significativamente e está a surtir efeitos positivos. Deixo então aqui uma nota de sincero reconhecimento pelo esforço e dedicação destes profissionais e da equipa que está a coordenar o combate ao covid-19.

Outras oportunidades deveriam também ser aproveitadas. A nossa economia tem que ser assente no setor privado e na iniciativa individual no pós-covid. Os trabalhadores informais que beneficiaram do fundo de resiliência devem passar a ser contribuintes fiscais. Temos que elaborar um plano de relançamento da economia.

Para terminar, 4 notas:

1- Não teria ficado mal aos políticos renunciar a uma parte dos seus subsídios para reforçar o fundo com uma contribuição simbólica extraordinária;

2- Cobramos muito aos políticos, mas esquecemo-nos que o civismo começa em cada um de nós e está nas pequenas coisas. Estive 8 horas numa enorme fila para realizar o segundo teste e vi muitos a tentarem ultrapassar (alguns conseguiram) os que tinham chegado antes. Chocou-me também saber que uma equipa de bombeiros deixou morrer um paciente na rua por falta de proteção e que outros transeuntes priorizaram a filmagem da situação em vez de o transportar para o hospital;

3- Profundo pesar e solidariedade para com

as famílias enlutadas e rápidas melhoras para aqueles que estão ainda em risco de vida, sob cuidados médicos.

4- STP vai vencer o Covid-19. Não tenho a menor dúvida!

Junho de 2020
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