Príncipe: Reflexões sobre a autonomia e as falhas no desenvolvimento regional
Trinta anos depois da autonomia regional, a ilha do Príncipe continua a enfrentar os mesmos desafios estruturais, entre promessas adiadas e uma dependência crónica de São Tomé.
A história recente de São Tomé e Príncipe é feita de momentos simbólicos: a independência em 1975, o multipartidarismo nos anos 90 e, mais tarde, a autonomia regional do Príncipe. Mas estas conquistas, embora históricas, deixaram questões por resolver. A independência foi liderada por um grupo restrito e dividido. A abertura democrática revelou fragilidades institucionais. E a autonomia regional, conquistada em 1995, continua por cumprir plenamente.
A ideia de autonomia nasceu da vontade de corrigir um desequilíbrio: uma população insular esquecida no processo de desenvolvimento nacional. Mas a forma como o estatuto foi implementado gerou mais dúvidas do que avanços. O Governo Central aprovou a autonomia no papel, mas resistiu em aceitá-la na prática, criando um sistema ambíguo e disfuncional. A interpretação do estatuto variou consoante interesses políticos, deixando a região sujeita à vontade de São Tomé.
Esse modelo híbrido resulta num paradoxo: o Príncipe é formalmente autónomo, mas continua dependente. Governa, mas só até certo ponto. Decide, mas sujeito a autorizações externas. Em vários momentos, confunde-se descentralização com subordinação. A relação entre o Governo Regional e o Governo Central é marcada por conflitos institucionais, como a transição entre José Cassandra e Filipe Nascimento ou o incidente com o ministro das Finanças que desconsiderou os secretários regionais.
Em 2010, foi aprovado o Estatuto Político-Administrativo da Região, e em 2022 tentou-se uma revisão. Mas a verdade é que nada mudou substancialmente. A Constituição continua a tratar a autonomia como uma exceção incómoda, e o Príncipe segue amarrado a um modelo que não lhe permite planear o seu futuro com verdadeira autonomia.
A autonomia, tal como existe hoje, depende da boa vontade do Governo Central. Essa dependência torna a ilha vulnerável a ciclos políticos e a interpretações ambíguas da lei. Pior: a insularidade do Príncipe é muitas vezes confundida com incapacidade – são Tomé e Príncipe não é única insularidade do mundo. A distância geográfica serve de pretexto para adiar decisões e manter um centralismo anacrónico, e afundar um regionalismo desorganizado.
Trinta anos depois, é legítimo perguntar: o que mudou? A ilha continua com dificuldades estruturais, economia frágil e uma população frequentemente ignorada. O turismo, apontado como setor estratégico, está longe de atingir o seu potencial. Faltam infraestruturas, formação profissional e uma estratégia coerente para atrair investimentos sustentáveis.
O Governo Regional, por sua vez, tem falhado em criar um modelo de gestão eficaz. A ausência de um plano de desenvolvimento articulado, aliada à instabilidade política e à burocracia, tem travado o progresso. Sucessivos governos regionais têm desperdiçado oportunidades criadas por investimentos no setor do turismo, incapazes de estabelecer uma articulação consistente com os investidores nem de providenciar a formação necessária ao capital humano local. Falta uma visão clara para consolidar a marca do turismo do Príncipe — marca essa que, graças ao excelente trabalho do investimento privado, já começou a ganhar notoriedade internacional, mas carece de acompanhamento sincronizado por parte do governo.
Para o futuro, é urgente apostar num mercado turístico mais exigente e com maior capacidade financeira, criar infraestruturas que permitam ao turista permanecer mais do que dois dias na ilha, revitalizar pontos turísticos já existentes, identificar novos potenciais de atração e lançar um modelo sustentável que permita o regresso dos jovens qualificados.
É necessário também identificar os sectores profissionais em falta na ilha, incentivar investidores na área do turismo e criar mecanismos que aproveitem as remessas dos residentes no estrangeiro, canalizando-as para o desenvolvimento local. A construção de habitações com materiais alternativos e sustentáveis deve ser incentivada, como forma de garantir um crescimento harmonioso e amigo do ambiente.
Regista-se inclusive um retrocesso em questões básicas, como o acesso à água potável. Houve uma tentativa de expansão do fornecimento, mas sem um plano conciso para avaliar se as fontes existentes suportam essa ambição. Como resultado, aquilo que já chegava a uma parte significativa da população hoje é escasso e mal distribuído. O mesmo se aplica ao setor energético, onde faltou uma aposta clara e sustentada em energias alternativas e limpas. A ausência de planeamento de longo prazo e de investimento em soluções sustentáveis mantém a ilha refém de um modelo energético frágil e dependente.
No setor da saúde, o cenário é igualmente preocupante. A prestação de cuidados médicos é precária, marcada por falhas constantes no fornecimento de medicamentos, ausência de equipamentos essenciais e falta de profissionais qualificados. As populações enfrentam dificuldades graves no acesso a serviços básicos de saúde, comprometendo diretamente a qualidade de vida e a dignidade humana.
No setor da habitação, a situação também revela um padrão de promessas mal executadas. Foram construídas e distribuídas casas sociais, mas sem qualquer planeamento integrado. Faltou garantir condições básicas como saneamento, criando bairros onde a falta de higiene e infraestrutura põe em causa a dignidade dos moradores. Uma ilha que pretende destacar-se no setor do turismo não pode continuar a ignorar sucessivos incumprimentos em matéria de salubridade pública. Grande parte da população ainda não tem acesso a um sistema de saneamento adequado — um problema estrutural que permanece invisível nas prioridades do Governo Regional, apesar das suas consequências diretas para a saúde pública e para a imagem externa do Príncipe.
É urgente formalizar um plano para as sanzalas e para as pessoas que nelas residem. Este plano não pode passar simplesmente por manter as pessoas naquelas casas, perpetuando as condicionantes do passado. A curto prazo, essa pode parecer uma solução prática, mas a médio e longo prazo seria um erro estratégico. Devemos olhar para os investimentos feitos em antigas sanzalas como Sundy e Belo Monte e procurar, a todo o custo, replicar essas iniciativas de reabilitação e dignificação. É imperativo revisitar o passado, identificar os erros cometidos e corrigi-los, assegurando um futuro mais digno e inclusivo para todos os residentes. Para tal, é essencial atrair investidores com planos equivalentes ou superiores aos que já existem, garantindo isenção de impostos em troca de investimentos sólidos em habitação, formação profissional e criação de emprego.
Em tempos falou-se do desenvolvimento da ilha, mas tudo não passou de uma confusão de conceitos, numa altura em que o investimento privado injetava grandes quantidades de verbas. Apesar disso, é inegável que muita coisa mudou e que surgiram sinais que alimentam alguma esperança. Ainda assim, a verdade é que o Príncipe está estagnado, perdido entre as necessidades reais da sua população e as vontades circunstanciais dos nossos dirigentes, tanto a nível regional como nacional.
Falta elevar o debate sobre a realidade regional a um patamar nacional, para que possamos repensar um plano integrado de desenvolvimento. Assim como a autonomia, também a independência nacional e a própria democracia devem ser revisitadas e discutidas — e, acima de tudo, traduzidas para as línguas maternas, incluindo crioulo de Cabo Verde, garantindo a sua plena compreensão pelo cidadão comum. Só a partir desse entendimento coletivo poderemos desenhar o caminho a seguir.
O percurso é longo, mas com disciplina, perseverança e tolerância podemos todos, em conjunto, conduzir o Príncipe e o país a um bom porto.
Para o futuro, o caminho passa por uma verdadeira descentralização, capaz de dar à região condições para decidir, governar e crescer. O potencial está lá: recursos naturais, beleza paisagística, cultura local e uma população resiliente. Falta apenas transformar autonomia legal em autonomia real. Isso exige vontade política, responsabilidade partilhada e um compromisso com o futuro do Príncipe enquanto parte integrante, mas também singular, da Nação.
Nota do autor: O autor é consciente que estes problemas são extensíveis a outros distritos do país, mas acredita que só com mais Príncipe teremos mais São Tomé e Príncipe.
