Nesta segunda crónica, não podia deixar de trazer um dos mais característicos e evidentes fenómenos linguísticos do nosso português em São Tomé e Príncipe: os R’s.
Diz a norma padrão que os R’s realizam-se foneticamente de diferentes formas, dependendo da posição que se encontram no interior da palavra. Tenhamos como exemplo, sem ser exaustiva, as palavras /rato/, /cara/ e /mar/ em que antevemos 3 formas possíveis de realização deste elemento.
Contudo, em São Tomé e Príncipe os R’s correm livres e soltos nas bocas de cada falante, satisfazendo as vontades e preenchendo as ilusões individuais. Nós por cá, talvez fruto ou influência da nossa história, decidimos alforriar os R’s, deixá-los livres para serem usados, falados, pronunciados e introduzidos como e onde bem se entender.
E fazemos uso dessa liberdade.
Por cá, o arroz Cataplana, talvez de tão saboroso (?), ganhou o estatuto de ároz bom. A minha vizinha, dececionada, imagino eu, com a conversa do companheiro do outro lado do telefone, apenas conseguia dizer, num fio de voz, “rapaz, ôcê podia morê pa mim”.
Solidarizei-me, naturalmente, com os dois sofrimentos: o da vizinha e o dos R’s!
Há, com certeza, causas que explicarão a existência desta variação à moda das ilhas, mas hoje não as trarei para esta conversa. Permitam-me, antes, partilhar convosco, não os meus sonhos (esses, guardo-os para mim e não deveria ser a única (?)) mas aquilo que consubstanciou uma espécie de pesadelo, de tão assustada e confusa que fiquei.
Ao assistir as notícias nacionais, deparei-me com uma frase escrita em nota de rodapé que me tiraria o sono durante alguns dias. Dizia: “DOPU faz demolição de murro de vedação (…)”.
Fiquei inquieta!
Nessa inquietação, decidi levar a questão aos meus melhores informantes, os meus alunos! Escrevi no quadro a palavra “murro” e pedi que a lessem em voz alta. Quase que em uma só voz pronunciaram todos “murro”. Muito bem! Passei à questão seguinte, qual seria o seu significado? Então a puíta começou:
– Professora, murro é murro!
– É para proteger!
– Professora, é parede.
Outro, mais impetuoso, sugeriu que significaria, sem sombra de dúvida, “soco”.
A decisão final foi consensual: “murro” significaria “parede “e “soco”. Introduzi, então, um elemento novo, que viria a frustrar as certezas do grupo ao escrever a palavra “muro”. As reações não se fizeram tardar:
– Professora, não conheço.
– Professora, não existe.
Fiquei desorientada!
Decidi confirmar os meus receios e num esforço final introduzi a frase “O carro é caro”.
Instalou-se a anarquia…
A variação no uso dos sons consonânticos [R], [r] e [ꞧ] em São Tomé e Príncipe estará relacionada com a ausência destes sons nos crioulos, nomeadamente no crioulo forro. Há, contudo, necessidade de estudos fonético-fonológicos que nos permitam entender as tendências do uso e as regras que determinam as suas ocorrências. No entanto, é crucial que os falantes não percam a consciência fonológica daquilo que é a norma, de modo a que a escrita não reflita o oral e o oral não atrapalhe a escrita.
Porque um carro pode ser caro mas um só murro jamais poderá derrubar um muro.
A variação, estude-se! O erro, corrija-se!
Porque é urgente Bem Falar para Melhor Escrever.