A Justiça e o Ímpeté Nacional

Há palavras que, de tão específicas, capturam na perfeição a essência de uma realidade. “Ímpeté” é uma delas. Esse termo magistral do léxico são-tomense, que descreve aquelas ramelas persistentes que toldam a visão matinal, parece ter sido criado à medida da justiça do país. Porque, convenhamos, se há instituição que tem demonstrado uma impressionante acumulação de ímpeté, é o nosso sistema judicial.

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O diagnóstico veio do próprio Primeiro-Ministro Américo Ramos, um ex-recluso, que não poupou nas metáforas: a justiça é um “cancro”, um órgão doente, contaminado pelo nepotismo, pelos vícios e pela corrupção. Mais do que um problema pontual, trata-se de uma doença crónica que tem corroído a confiança da população e transformado os tribunais num labirinto onde os processos se perdem e as decisões desafiam a lógica. Mas o mais intrigante não foi a denúncia em si – foi a ausência de resposta.

O Silêncio dos Inocentes (ou Nem Tanto): esperava-se que, depois de acusações tão diretas, surgissem vozes indignadas do setor judicial. Magistrados, juízes, sindicatos… alguém! Um comunicado, uma conferência de imprensa, uma nota de rodapé que fosse! Mas nada. Nem um murmúrio, nem um desmentido, nem sequer um “quem cala consente”. O silêncio foi absoluto, como se a justiça, além de cega, fosse também surda e muda.

Este silêncio, no entanto, não é um acaso. Ele é sintoma do próprio ímpeté que aflige a justiça são-tomense: uma apatia institucional que lhe turva a visão e impede qualquer reação eficaz. É aquele estado letárgico onde tudo se passa em câmara lenta, onde os processos adormecem em gavetas poeirentas e onde a indignação – quando existe – raramente se traduz em ação.

O grande problema do ímpeté não é apenas o facto de obstruir a visão, mas também a preguiça que vem associada a ele. Afinal, quem nunca acordou com os olhos colados e decidiu que mais valia ficar um pouco mais na cama do que fazer o esforço de os abrir? Pois bem, parece que a justiça são-tomense vive nesse eterno estado de preguiça ocular.

Há processos que dormem durante anos sem explicação. Outros movem-se a uma velocidade surpreendente, quando os interesses certos estão em jogo. Há sentenças que parecem ter sido redigidas em piloto automático e decisões judiciais que desafiam qualquer lógica jurídica. É uma justiça que, de tão entorpecida pelo ímpeté, já nem se dá ao trabalho de fingir que está desperta.

O Colírio da Coragem

“Humor de Gravata, Nº 2”

Amador Cruz
Humor de Gravata, N° 2

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