Parte II: Da Necessidade de Reforço da Transparência e da Integridade da Justiça em São Tomé e Príncipe
O enredo – pela posse da cervejeira Rosema – que alimenta um sem número de decisões judiciais completamente esdrúxulas, inexistentes e desconforme às regras processuais pré-estabelecidas em lei adjetiva, é marcado por uma arbitrariedade (nunca vista) que deveria chocar toda a comunidade jurídica.
Da Necessidade de Reforço da Transparência e da Integridade da Justiça em São Tomé e Príncipe
Parte II
Na administração da justiça incumbe aos Tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, dirimir os conflitos de interesses públicos e privados e reprimir a violação das leis. É o que preceitua o número (n.º) 2, do artigo (art.º) da Constituição da República Democrática de São Tomé Príncipe (CRSTP). Porém, no âmbito do volte face envolvendo processo da cervejeira Rosema, e se subsumirmos os últimos atos e as decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional (TC) de São Tomé e Príncipe (STP) ao crivo do que dispõe a norma constitucional citada, bem como às próprias normas constantes na Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (Lei n.º 19/2017, de 26 de dezembro), facilmente chega-se a conclusão de que, infelizmente, por estes dias o ordenamento jurídico de STP parece se ter transformado num mero centro emissor de conteúdos (eminentemente não jurídicos) que chegam e sobram para produzir uma autêntica telenovela, diga-se de péssimo gosto.
O enredo – pela posse da cervejeira Rosema – que alimenta um sem número de decisões judiciais completamente esdrúxulas, inexistentes e desconforme às regras processuais pré-estabelecidas em lei adjetiva, é marcado por uma arbitrariedade (nunca vista) que deveria chocar toda a comunidade jurídica. O processo jurisdicional de constitucionalidade que se quer ordenado, não arbitrário e assente numa hermenêutica jurídica que transmita confiança e reconhecido saber jurídico, parece ter dado lugar a um conjunto de decisões panfletárias, mal fundamentadas e desconexas da realidade jurídica vigente. O rigor e o saber jurídico parecem ter-se se sucumbindo à receita mágica e secreta de uma cerveja que já demonstrou ter poderes suficientes para abalar, desestabilizar e, não faltando muito, destruir por completo um dos pilares fundamentais de um Estado que se quer de Direito: a confiança dos cidadãos nos tribunais.
Dentre os vários erros judiciários e decisões que nunca deveriam ter sido tomadas pelos tribunais de STP, o processo Rosema também é bastante elucidativo de como é importante que os operadores do direito tenham presente que os princípios constitucionais existem para “garantir a segurança jurídica na feitura e na aplicação das leis”. Não obstante ser esse o entendimento de ampla jurisprudência e da doutrina, no âmbito do processo envolvendo a cervejeira Rosema esses princípios não foram tidos nem achados, veja-se, por exemplo, no que diz respeito a matérias de execução de bens?…, habitualmente reservada à competência exclusiva dos tribunais de cada Estado.
No que aos erros judiciários diz respeito, importa destacar que, à data em que se registaram os acontecimentos que estão na origem do envio da carta rogatória – que nada mais é do que um instrumento jurídico de cooperação/comunicação entre dois países – não consta (salvo erro) que houvesse qualquer acordo ou tratado entre São Tomé e Príncipe e Angola, que reconhecesse e atribuísse competência aos seus respetivos tribunais para penhorar e executar bens e/ou direitos, pelo que considero que nunca deveria ter sido expedida a tão propalada carta rogatória nos termos em que fora feita, e muito menos ainda terem sido realizadas as diligências subsequentes pelas entidades judiciais são-tomenses. E não poderia ter sido expedida uma carta rogatória nos termos em que fora feita porque, com devido respeito por quem tenha outra posição distinta, o seu conteúdo dava instruções a respeito de matérias que dizem respeito a bens que se situam em território de um Estado soberano, pelo que, no limite, só por meio de uma sentença transitada em julgado, sem possibilidade de recurso, poderiam os tribunais são-tomenses serem chamados a apreciar uma eventual “executoriedade” dessa decisão em território nacional.
Assim, a julgar por tudo quanto foi tornado público pela imprensa nacional e internacional, e pelos próprios intervenientes (diretos e indiretos) deste capítulo vergonhoso da nossa história democrática, o processo Rosema, feliz ou infelizmente, colocou ao ar livre, na minha opinião, a necessidade urgente do país fazer uma reflexão séria e profunda sobre que “sistema de justiça” de facto pretende construir, sim, digo construir porque este atual não serve aos são-tomenses nem aos desafios impostos pelo (novo) mundo contemporâneo e muitos menos cumpre ao que está estabelecido na nossa Constituição (art.º 120, n.º 1 da CRDSTP).
O processo Rosema coloca do ponto de vista estritamente jurídicos dois grandes desafios que considero serem essenciais para que de facto São Tomé e Príncipe evite ter para todo o sempre a imagem de um sistema de justiça sem credibilidade, o que não deixa até de ser um paradoxo haja vista o facto de nestes 48 anos da nossa história democrática, e particularmente nos últimos 25 anos, o país e esse mesmo sistema de justiça terem-se beneficiado de imensas ajudas financeiras; apoio técnico, formações e especializações em matérias justiça.
Assim, os dois grandes desafios que facto podem ajudar restaurar o sistema judicial de a confiança dos cidadãos nos tribunais devem ser, na minha perspetiva, os seguintes:
Em primeiro lugar, será necessário que efetivamente se torne o sistema judicial de STP verdadeiramente independente, pois só assim será possível consolidar a democracia e fazer respeitar os direitos e as liberdades individuais de cada cidadão. Só por meio de um sistema de justiça livre das interferências e das amarras políticas e dos projetos de poder, será possível de assegurar e efetivar a igualdade dos cidadãos perante a lei e perante os tribunais, sem receio das arbitrariedades geradas pelos abusos de quem tem o poder em cada momento histórico. Apenas mediante um sistema de justiça independente será possível os cidadãos e as empresas estabelecerem as suas relações económicas e sociais, sem o medo da insegurança jurídica, e muito menos sob a dependência dos jogos de poder e de interesses pouco republicanos. E a este propósito, julgo ser importante ressaltar o quão importante contributo dariam o TC e STJ de STP se, de facto, com fundamento em lei e na defesa dos interesses legalmente protegidos dos cidadãos, assumissem mais protagonismo no combate às decisões políticas irracionais e injustas, que, não raras vezes, violam disposições constitucionais e causam danos ao povo são-tomense: pensemos, por exemplo, na afetação de recursos públicos para adjudicação de obras públicas sem o mínimo de transparência, ou eventualmente procedimentos de aquisição de equipamentos e máquinarios essenciais ao bom funcionamento de infraestruturas criticas do país, que no fim mostraram-se ruinosas e contra as melhores práticas de governance.
Por isso, a independência dos tribunais, além de ser extremamente importante para que se garanta a igualdade dos cidadãos e das empresas perante a lei, é ainda estruturante para estabelecer boas relações internacionais entre pessoas e empresas, já que dela dependem a certeza e a segurança jurídica, que por sua vez são fatores fundamentais na base de construção dos contratos internacionais de comércio de que tanto o país necessita para criar riqueza e caminhar com as suas próprias pernas.
Em segundo lugar, e não menos importante, é também urgente e necessário que se promova uma real e efetiva cultura de responsabilidade (e de responsabilização) no seio próprio sistema judicial de STP, pois, onde não há responsabilidade, não há autoridade, respeito, confiança nem credibilidade. Quem dirige os tribunais e administra a justiça em nome do povo tem (ou deveria ter) a responsabilidade acrescida de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, dirimir os conflitos de interesses e públicos e privados e reprimir toda e qualquer violação das leis da República, independentemente da proveniência.
Por último, no plano estritamente jurídico, estamos a assistir ao esvaziamento, descaracterização e a uma morte lenta das nossas instituições, e os efeitos serão catastróficos e prolongar-se-ão por muito tempo, para o mal dos nossos pecados, se nada for feito para interromper este ciclo longo de crises (artificiais e por conveniência) no sistema judicial de STP.
O dom da virtude nasce connosco, é verdade, mas pode ser adquirido ao longo das nossas vidas e, é por isso, que não podemos deixar de exigir virtude e integridade a quem nos governa.
Gelson Baía
02/08/2023