Eleições Presidenciais 2016 -

Democracia coxa de homens cegos

«A democracia não está na origem popular do poder, Ela está no seu controlo. A democracia é o exercício do controlo dos governados sobre os governantes. Não apenas uma vez em cada cinco anos, nem todos os anos, mas todos os dias.” By: Alain

Em períodos de campanha eleitoral todos os sonhos e utopias são permitidos, apesar disto por vezes nos custar um balúrdio: de “STP como plataforma de prestação de serviços de referência da África Central” ao “Dubai africano”, passando pela construção do “maior supermercado da África Central”… Mas atenção, há que ser cauto! Proponho voltarmo-nos à realidade, nem que seja por um instante.

Que nos desenganemos, na nossa cultura democrática já se tornou hábito acreditar fiel e cegamente na máxima propagandista: “o povo põe, o povo tira”, ou “é o povo quem decide”. Porém, entre o pôr e o tirar, ou seja, da eufórica e renovada expetativa que assinala o início à pungente e amarga decepção que sentencia o fim, o povo que se cale e fique quieto!

Que não me levem a mal, não se trata de um discurso de teor pessimista, muito menos aterrador, à imagem do quadro retratado pelo filósofo alemão Nietzsche, quando este conclui que “O Estado é o mais frio de todos os monstros frios. É frio mesmo quando mente; e eis aqui a mentira que sai da sua boca: – Eu, o Estado, sou o povo”.

Além do mais, quero aproveitar o ensejo para apelar solenemente os meus concidadãos a acorrerem massivamente às urnas eleitorais para exercerem com o maior civismo possível o seu dever cívico de votar de forma livre e consciente. Para reiterar este apelo, permitam-me aqui unir-me em pensamento ao malogrado Carlos Graça que, através do seu consagrado livro intitulado Ensaio sobre a Condição Humana (2004), tece as seguintes palavras: “No decurso das mais agitadas jornadas do que se tornou a minha profissão, refiro-me às campanhas eleitorais (excepcionalmente penosas no nosso contexto cultural e de miséria), dirijo-me frequentemente aos populares incitando-os a cumprirem o seu dever cívico de votar”.

Não obstante ter sido sumamente conhecido como homem político santomense, Carlos Graça confessa ter entendido a razão da falta de fé dos seus compatriotas nas ações políticas e nos homens políticos, asseverando que a democracia multipartidária não veio senão acentuar o declínio da crença política do povo, devido aos efeitos nefastos que a mesma trouxe consigo: “Torna-se necessário insistir nesse apelo porque, passada a euforia dos anos de brasa pós-independência, se foi criando um clima de cepticismo popular em relação à acção política e aos homens políticos. E, ao contrário do que a demagogia oportunista dos “democratas” de última hora anunciava, esse sentimento de desconfiança do povo em relação aos seus dirigentes agravou-se com a democracia multipartidária na medida em que nela pioraram em quantidade e gravidade os egoísmos dos governantes”.

Estabilidade: palavra de (des)ordem?

Há muito que forças políticas diversas aclamam vorazmente pela estabilidade política, um desejo igualmente proferido pelos cidadãos e cidadãs de São Tomé e Príncipe, cansados de servirem de punching ball na luta desenfreada e indiscriminada pelo poder, que cegava (cega e continuará a cegar) os seus dirigentes políticos e que derrubava governos como se de casas velhas se tratassem. Daí o sucesso fulgurante a posteriori da tão conceituada palavra de ordem de propaganda política: “Pela estabilidade!” “Pela estabilidade!”, que justificou (e justifica) a atribuição da maioria absoluta ao atual governo. Era como se se tivesse encontrado finalmente um lema de campanha à altura (ou quase) do “Yes We Can!”, do democrata Barack Obama, que tanto furor causou aquando das eleições presidenciais americanas de 2008.

Mas nisto, como é sabido, o poder se assemelha ao dinheiro, abre apetites e faz alimentar expetativas muito maiores do que as inicialmente previstas, quanto mais se tem, mais se quer. Atualmente, o desejo pela estabilidade já não se circunscreve no contexto anteriormente requerido: um poder executivo estável com maioria absoluta. Assistimos hoje a uma luta por aquilo a que chamo de estabilidade extrapolada ou, meramente, de estabilidade total pelo poder total. Digo isto por recear que a estabilidade total se torne num pretexto demagogo de manipulação das massas e que, consequentemente, justifique o relançar de uma luta acérrima, cega e desnecessária pelo poder total (a palavra “total”, da qual derivam termos que fazem pressentir o pior, como “totalitário”, ou “totalitarista”).

Ludwig Von Mises pinta-nos um quadro deveras assombroso do poder que, manifestado através das ações de um governo detentor de maioria (absoluta), tende fortemente a exercer-se em detrimento dos direitos da minoria, negligenciando os valores coletivistas que regem os princípios democráticos da filosofia social liberal: “Aos seus olhos [do governo da maioria], a maioria tem sempre razão, simplesmente porque eles têm o poder de aniquilar qualquer oposição; a regra da maioria é o poder ditatorial do maior partido, e a maioria dominante não é obrigada a moderar-se no exercício do seu poder ou na gestão dos assuntos públicos. A partir do momento em que uma facção consegue garantir o apoio da maioria dos cidadãos e, em consequência disto, assumir plenamente o governo, a mesma é livre de negar à minoria os mesmos direitos democráticos que nortearam anteriormente a sua luta para alcançar a supremacia”.

Enfim, “Pela estabilidade!” tornou-se, na presente campanha, numa palavra de ordem amiúde proferida por todas as cores e figuras políticas, como se todos tivessem encontrado a fórmula mágica para atrair eleitores para si: “Pela estabilidade!” “Pela estabilidade!”. Também já tenho visto alguma ou outra figura política, a priori tocada pelo sentimentalismo, arremessar: “Por amor à terra!” (lema de campanha já utilizado no passado); ou ainda frases muitas vezes repetidas, como: “Eu amo este país maravilhoso e de gente maravilhosa, este país bonito”. A propósito, disse uma vez um polemista francês: “Não lhes pedimos que amem o país, apenas que governem com justiça”. Dito isto, talvez os nossos dirigentes políticos precisem de ser menos sentimentalistas para que se ponha cobro à falta de imparcialidade nas ações públicas, à rixa, ao clientelismo (já havia dito na introdução deste texto que sempre nos é permitido sonhar) e à vontade constante de vingança.

Democracia (não) (com)sensual?

O conceito de estabilidade total pelo poder total traduz-se pela instalação de um poder político supremo que se pretenda diversificado através das diferentes áreas de proeminência política existentes, mas cuja filosofia se convirja em todos os níveis dos órgãos de soberania constituintes do sistema democrático. Sem o qual, acredita-se ser difícil governar e “desenvolver o país”. Por outras palavras, a estabilidade total colocaria fim às contradições entre os diferentes órgaos de soberania existentes, o que permitiria caminharmos todos (ou quase) de mãos dadas como meninos e meninas felizes (pobres ingénuos, mas felizes) rumo ao “desenvolvimento”.

A democracia, enquanto filosofia política por excelência, tem suscitado, desde a sua génese, contradições múltiplas, tanto na sua definição como na sua aplicação. Abraham Lincoln, homem político e humanista, definiu a democracia como sendo: “o governo do povo, pelo povo e para o povo”. Esta definição de Lincoln da democracia peca pelo seu simplismo e falta de sentido crítico. No entanto, nisto concordo com Lincoln: o povo está no epicentro do poder, quer seja ele democrático, ditatorial ou oligárquico. Rousseau, menos entusiasta na sua crítica sobre a democracia (“representativa”), acredita que “o povo perde a sua liberdade a partir do momento em que se atribui representantes”. Alguns críticos da democracia defendem que, tal qual como esta é aplicada, não estamos realmente face a um sistema democrático, mas sim face a uma espécie de monstro de três cabeças: oligárquico (são sempre os mesmos que governam), plutocrático (o poder é sempre atribuído aos ricos) e aristocrático (o poder é elitista). Alguns acrescentam uma quarta cabeça, aludindo à cratocracia (o poder daqueles que já têm poder e que tudo fazem para permanecer no poder).

Paul Ricoeur, considerado por muitos dos seus pares como um dos mais conceituados filósofos franceses do século transato, entende a sociedade democrática como uma ágora que se desdobra por meandros de pressupostos pouco consensuais. Este conclui que “Est démocratique une société qui se reconnaît divisée, c’est-à-dire traversée par des contradictions d’intérêts, et qui se fixe comme modalité d’associer à part égale chaque citoyen dans l’expression de ces contradictions, l’analyse de ces contradictions et la mise en délibération de ces contradictions en vue d’arriver à un arbitrage. (É democrática uma sociedade que se reconhece dividida, ou seja, atravessada por contradições de interesses, e que se fixa como modalidade associar de igual para igual cada cidadão na expressão destas contradições, na análise destas contradições e na deliberação destas contradições, afim de chegar a um acordo) ”.

A democracia não é um poder monolítico, as “contradições de interesses” estão no centro do exercício democrático, e há que reconhecer a legitimidade dessas contradições, bem como a legitimidade daqueles que as defendem. Este reconhecimento não deve ser feito através de um modo de relação vertical em que uns se consideram superiores aos outros, ou acreditam que os seus interesses são mais legítimos do que os interesses dos outros. Não se pode, num toque de varinha mágica, fazer desaparecer as forças contraditórias. Essas forças são indispensáveis à democracia, elas são constituintes dos alicerces sobre os quais esta se exerce, e devem fazer-se sentir na sociedade para que a própria democracia seja legitimamente reconhecida como tal. Por esta razão os atores da sociedade devem parlamentar, para que se chegue a um consenso. Este consenso, uma vez deliberado, traduz-se num acordo em que cada parte envolvida (independentemente da sua posição na estratificação social) se vê incluída e tem os seus interesses reconhecidos.

Conclusão

Este exercício de reconhecimento mútuo na democracia só é possível com a maturidade política dos atores em cena. Sob a luz destas palavras, devo dizer que a estabilidade política é possível sem que o poder total esteja concentrado nas mãos de uma só força política. Mas não quero com isto dizer que o contrário não permitiria chegar ao mesmo resultado pretendido. Podemos ter todo o poder concentrado nas mãos de uma só força e ainda assim sermos testemunhas de uma verdadeira e sólida estabilidade. Contudo, estou convicto de que se um determinado ator de governação política não possui maturidade política necessária para governar, estando ladeado por forças oponentes, receio que tão pouco possua maturidade política necessária para governar sem forças adversas no seu encalço. É na adversidade que se reconhecem virtudes e defeitos, valores são postos à prova e o caráter distinguido.

Leandro Lavres

Formado em Sociologia na universidade Jean Monnet, Saint-Etienne, França

Áreas de especialidade: Engenharia de Projetos, Ação Comunitária e Desenvolvimento

Trabalha como Assistente de Programas na ONG Globo Verde Internacional, organismo de estudos especializado em Ambiente e Desenvolvimento Sustentável

Co-fundador, Diretor Administrativo e Tradutor da LúnguaMundu, Traduções, gabinete de tradução e de intepretação

Coordenador voluntário do Gabinete de Estudos, Cooperação e Projetos (GECP) do Conselho Nacional da Juventude (CNJ)

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